domingo, 29 de junho de 2008

ENTREVISTA ....(2)


P: Estava no 1º ano do ciclo preparatório (actual quinta classe), na Escola Preparatória Marechal Carmona, quando venceu o concurso de redacção com o título «Se eu fosse o director...». Recorda-se do que escreveu nesta composição, já que o destino reservou-lhe efectivamente este cargo?
R: Tenho uma ideia do que escrevi apesar do tempo que já lá vai. Isso aconteceu em 1972, há mais de trinta anos, e o que apontei foram os aspectos que à época precisavam ser melhorados na gestão da Escola Preparatória Marechal Carmona, no Uíge. Lembro-me que critiquei o mau estado dos WC, a infiltração de águas no terraço, os problemas no recreio pela falta de espaço adequado para a prática do futebol, entre outras observações feitas com uma motivação construtiva, edificante. Então como agora penso da mesma forma em relação aos cargos directivos: ou se assumem para fazer obra, ser-se criativo, percursor de mudanças para melhor, ou então devem ser rejeitados.


P: O ano em que nasce é de grande efervescência política em Angola. Há o início da luta armada contra o regime colonialista. O que pôde fixar por altura da independência de Angola?
R: Quando se deu a independência de Angola eu tinha 14 anos feitos. Era, felizmente, dono de uma memória fabulosa, que me permitiu gravar os traços essenciais do colonialismo. Sabia, por exemplo, que os meninos negros eram pobres na sua esmagadora maioria e que, nas suas relações com os colegas de raça branca, eram sempre os coitadinhos a quem caía bem um gesto generoso (como a partilha do lanche na escola, o convite para ir à casa do colega rico, etc.). Os tempos frenéticos anteriores à independência (1974 e 1975) são também marcas fortes como, por exemplo, os confrontos entre a FNLA e o MPLA na antiga Carmona, em Julho de 1975, que terminaram com a retirada das forças do MPLA em direcção a Luanda. Algumas das lembranças desse tempo estão num livro de crónicas que em breve estará nas bancas com o título Antes do Quarto.


P: A ideia que nos traz de Tomessa é a de ser uma aldeia pacata, com estórias incríveis. Que estórias ouviu nessa altura?
R: O Tomessa é de facto uma aldeia pacata. Situa-se a dois km da cidade capital do Uíge, rodeada do verde clorofila que é, no fundo, a imagem de marca de toda a região nortenha, onde praticamente chove todo o ano. É uma aldeia onde não acontece nada de especial, a não ser o privilégio de se poderem ouvir ali estórias belíssimas do infinito imaginário do campo profundo. Contam-se fábulas onde os animais da selva têm todo o protagonismo e transmitem aos homens lições de vida que os inteligentes fazem bem em seguir, lições de humildade, de modéstia, que tornam as pessoas de profunda matriz rural umas jóias, pouco dadas às disputas selvagens próprias do meio urbano e que exercitam até ao limite a solidariedade, o espírito de entreajuda.


P: Como se dá a sua viragem de Director da Rádio Nacional de Angola a Director Geral do Jornal de Angola?
R: Na Rádio Nacional de Angola era, por altura da minha indicação para DG do Jornal de Angola, Director de Informação. Exerci aquela função de Janeiro de 1993 a Novembro de 1994. Pessoas que acreditam nos jovens, no seu potencial, resolveram dar-me uma oportunidade e avançaram o meu nome para preencher uma vaga entretanto aberta no Jornal de Angola com a exoneração do colega Victor Silva. Apenas isso.


P: Beneficiou de uma bolsa de estudos para formação superior em Cuba. A América Latina contempla alguns ilustres escritores e escribas. O que consumiu durante esse período?
R: Foi uma surpresa agradabilíssima o meu contacto com a literatura latino-americana. Direi mesmo que, se calhar, a ousadia de um dia escrever um livro terá nascido ali, na minha descoberta dos magníficos escritores daquela região do Mundo. Fascinou-me de modo incrível o Gabriel García Márquez, que comecei por descobrir através da sua obra prima Cem Anos de Solidão e depois todos os outros escritos seus, ou quase todos, com realce para O Amor nos Tempos de Cólera, O General no Seu Labirinto, Crónica de uma Morte Anunciada, etc. Li-o também enquanto cronista exímio (tinha uma coluna semanal num jornal de Havana, o «Juventude Rebelde», que literalmente se evaporava dos quiosques aos domingos, o dia dos escritos do colombiano). Li outros grandes nomes, como Mário Vargas Llosa, Borges, Neruda, e todos eles redimensionaram o gosto pela leitura que me vinha já de criança. Sonhei em ser um dia como eles, salvas as respectivas distâncias, é claro.


P: Concorda com o sistema socialista que Cuba engrena?
R: É claro que o sistema político de Cuba gera sentimentos contraditórios, uma espécie de amor e ódio contíguos. Acredito em muito do bom que o sistema moldado por Fidel Castro conseguiu, como a educação, a saúde, o desporto, os índices baixíssimos de criminalidade urbana, o respeito pela pessoa humana, etc., mas está claro que sou suficientemente equidistante para não aplaudir muitas coisas do regime, como o esforço inglório pelo igualitarismo, que pretende que um cientista, por exemplo, tenha de penar na bicha do leite como o faz o taxista ou o operário. Não sou do mesmo modo favorável ao olhar desconfiado do regime para com as pessoas com riqueza material, como se viver confortavelmente configurasse um atentado ao pudor. Existem, de facto, situações difíceis, contraditórias, preocupantes, na Ilha onde passei seis valiosíssimos anos da minha juventude, mas admito que por lá são mais as coisas boas, os princípios bons, as normas boas, que abundam, se comparadas com as falhas e os insucessos do regime. Para quem, como eu, dá muito valor à dignidade e tem o sentido de justiça bem arraigado, é claro que respeito muito Cuba e o seu percurso.


P: É comum dizer-se que o jornalista está, de uma ou de outra forma, amordaçado. O que representa para si, em Angola, o exercício do jornalismo?
R- Ser jornalista é, em primeiro lugar, responder a uma vocação. E, como todas as vocações, ninguém sabe explicar porque se quer ser jornalista e não outra coisa qualquer. No nosso caso, qual é a nossa situação? A mesma de qualquer jornalista em qualquer outro lugar do mundo: comprometido com a verdade e agarrado a balizas que são as que definem a linha editorial do meio de comunicação social que o emprega. Não há jornalista nenhum que trabalhe numa revista tipo «Play Boy» e que se atreva a falar mal da nudez, das curvas de sereia das mulheres avantajadas. No entanto, quem escreva para o boletim do bispado nunca terá chances de gabar o erotismo das mulheres. É tudo uma questão de compromisso, de se ter um patrão, por muito que este termo pareça pesado. Disse há dias numa palestra sobre comunicação social que a «independência no jornalismo é qualquer coisa apenas inventada para soar bem aos ouvidos dos democratas, mas que não tem, rigosamente, qualquer realização prática».


P: Fala-se da globalização como uma fonte geradora de aculturação. Que papel cabe aos jornalistas, nesta era da informática, como formadores de opinião?
R: Os jornalistas não precisam de cair rendidos aos encantos da globalização, de modo acrítico. Seria uma tristeza e uma pena. Têm de ser os primeiros a reconhecer que pertencem a um espaço geográfico determinado, a um espaço etno-cultural específico e que, por isso, não precisam virar meras caixas de ressonância ou infelizes copiadores do que outros criam. Se o jornalista for capaz de se assumir no que pensa e difunde como um cidadão de um determinado país antes de sê-lo do Mundo, aí sim, estará a formar opinião, estará a ser útil a si e aos seus, o seu trabalho terá serventia.


P: Que subsídios trouxe para o jornalismo angolano o surgimento da imprensa privada?
R- A imprensa privada veio oxigenar o jornalismo angolano. Para já, trouxe consigo um alargamento do mercado de emprego porque, até então, ingressar no jornalismo significava a priori trabalhar para a TPA, a RNA, o Jornal de Angola ou a Angop. Acho que era um mundo demasiado restrito, não só no aspecto físico, mas entendido também como espaço de ideias. Basicamente, os quatro veículos mencionados têm a mesma orientação editorial, pois são de capitais públicos. A imprensa privada alterou o «status quo» e permitiu, pela primeira vez em décadas, outros ângulos de abordagem. A visão monolítica da sociedade não é uma virtude, aliás, só ajuda a criar mitos que podem levar muito tempo a desmantelar, com todo o prejuízo que causa em gerações de indivíduos. Dito de modo mais directo, o surgimento da imprensa privada foi um passo positivo. Não quer isto dizer, porém, que ela seja um poço de virtudes. Tem as suas falhas, os seus desacertos e até por culpa sua ou não é deste tempo a ideia que acho ridícula de se acreditar que só existe liberdade de imprensa se um órgão determinado falar mal do Governo.

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